sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Sapatos Vermelhos

Rezava apegada em seu terço com tanta concentração e avidez pelo próximo Pai-Nosso, que mal controlava sua respiração. Era uma madrugada fresca, dessas que não faz muito frio, mas quando se esta dentro de um desses casarões antigos, o vento gélido da madrugada parece vir de dentro de seus armários. Por isso usava uma blusa insossa, cinza, por cima daquele seu hábito tão batido.

De repente, fugindo de seu controle, uma lágrima, uma dessas, que toda mulher, casta ou não, sempre deixa escapar. Simplesmente por ser mulher. Renegou isso por tantos anos! Escolhera não ser mulher. Fugiu das leis reprodutivas, controlou seus desejos, esqueceu suas vaidades. Mas aquela lágrima que escorria lentamente, fazendo uma ligeira cócega, era toda a angústia, todo o resultado daquela opressão silenciosa da qual sempre orgulhou-se tanto.

Inveja, Inveja. Sentia inveja. Sentiu a inveja pulsando seu coração. Sentiu-se perdendo o que uma vida levou para construir. Erro. Pecado.

Seu pranto trouxe a aurora; o céu enrubescia, seria reflexo de sua alma maculada? E o dia também trazia a menina de sapatos vermelhos. Desses de bicudos e salto bem alto e fino, de veludo. Ela cheirava mal, era o cheiro do que imaginava ser uma mistura de todos os pecados que tanto repudiava.

Mas a menina ria e gargalhava, e andava de forma ébria do alto daqueles sapatos vermelhos. Sempre quisera ter um assim, eram tão bonitos! Mas nunca pode ter um, diziam-lhe que carregava o pegado, como mulheres de vida fútil.

Mas ela rezava por si, egoísta que era e não pelas atrocidades contra a religião que a menina certamente fazia. Rezava pela fraqueza, pelo medo de seu pecado ser mais grave que aqueles comentidos pela menina. Por que no fundo, dentro de seu coração tão enrustido, a dúvida persistia, a dizimar sua fé: quem sabe, quem sabe se um dia não tivesse tido um, nem precisaria ser tão bonito, se tivesse se privado menos de ser mulher, se tivesse tido um par de sapatos vermelhos, não teria sido mais feliz?

Amor Sem Fim

"Foi um amor sem fim. Namoraram, ficaram noivos.Às tardes, le ia fielmente à casa dela. Assentavam-se nas cadeiras de vime colocadas na calçada e conversavam. Faziam planos para o futuro como fazem todos os noivos. Enquanto isso ela bordava o enxoval. O tempo passou. A canastra do enxoval ficou cheia. E assim continuaram, fazeno planos para o futuro e cuidando do enxoval, ate que ficaram velhinhos. Aí, deixaram de fazer planos para o futuro e passaram a confidenciar memórias do passado. Nunca brigaram. Nunca pensaram em se separar. Foram felizes até que a morte os separou"

Rubem Alves

E eu... ah, eu ando descrete no amor...

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Então... é Natal

- E agradecemos a Deus, em primeiro lugar, por estarmos todos reunidos, diante desta mesa farta...
- Mãe eu quero torta de frango com requeijão
- Shhhhh!
- Farta acima de tudo de amor e união
- Mãããe! Olha o pernil queimando no forno!
Natal em família. Porque Natal que se preze, tem que ser em família. Tem que ser tudo apertado para ressaltar a união. Tem ser tudo farto para destacar a gula. Tem que ser estranho para confirmar que no fundo somos todos iguais.
Há certas tradições que jamais deveriam ser extintas. Comemorar o Natal em família prima em minha lista desde quando eu era neta única e tinha a difícil missão de receber todos os presentes que as pessoas queriam me dar, e que por receber tantos presentes de avós , pais e tios, nem dava muita importância se Papai Noel resolvesse me mandar mais um.
Nunca tive uma família muito grande, mas também nunca achei que precisasse. Tenho no meu pequeno núcleo todas as características para enquadrar aquele conjunto de pessoas como família.
Reunimos-nos no Natal. Todo Natal. E todo o Natal contamos com a missa de Natal, a ceia de Natal e o almoço de Natal, ou seja, dentro da mais absoluta normalidade contando com dois motivos gastronômicos e um religioso, fortes suficientes para por frente a frente pessoas que rosnaram uma para as outras durante o ano inteiro, fazendo-as sorrir e desejar que tenhamos um Feliz Natal em família.
O motivo religioso, a Missa do Galo, é um pano de fundo e serve como intimidador para quando alguém insiste em não dar trégua para as querelas cotidianas do resto do ano.
- Mas é Natal, Rafa! Esqueça essa mesquinharia do seu primo, ele te mostrou o ano inteiro que é devagar, vamos cear em paz!
Também é de grande valia o ponto religioso para domar os estômagos mais vorazes.
- Ai meu Deus! Gula é pecado! Não é porque temos fartura que vamos fazer tudo errado e esquecer o verdadeiro motivo de estamos aqui: o nascimento do Menino Jesus!
Clichê, clichê, clichê.
O dia de Natal em si é sinônimo de marasmo nas ruas, mas intensas atividades em algumas casas. Digo algumas porque noventa por cento das casas na realidade encontrar-se-ão absolutamente vazias, já que as pessoas, por costume ou vadiação, preferem agrupar-se na casa de um parente, dizendo saudar novamente o pobre Menino Jesus.
A casa escolhida, em geral é a menos espaçosa em termos qualitativos para abrigar pessoas, mas com melhor estrutura para gelar cervejas e assar pernis. Nessa época do ano, difícil o cômodo da casa escolhida que não atinja a densidade demográfica de cinco pessoas por cômodo. Incluindo os banheiros, onde sempre é possível encontrar ao menos três crianças tomando banho na banheira, um adulto pra tomar conta e alguém passando mal na privada, seja dos intestinos via arriba ou via abaixo.
É este o momento em que as casas se tornam santuário dos colchonetes. Há colchões, colchonetes e edredons espalhados por cada centímetro da casa, exceto claro, o local onde se encontra o forninho, a churrasqueira e a piscina de mil litros.
De o ato dar um jeitinho para todos dormirem confortáveis, derivou-se um outro hábito peculiar. Devo confessar que nunca entendi muito bem a necessidade de dividir os cômodos entre quartos de dormir de homens e quarto de dormir de mulheres, já que o álibi usado é a manutenção da ordem. Estranho.
Por ser uma data comemorativa típica do verão, alguns lugares ficam intransitáveis, como por exemplo, a cozinha, onde se assam todos os tipos de carne. Aliás, isso me recorda mais uma divisão sexual tipicamente natalina: mulheres, principalmente as que já atingiram mais de cinqüenta anos, têm que preparar assados. Homens, de todas as idades, insistem em fazer churrasco.
O resultado é um pandemônio de carnes de todos os tipos: carneiro à caçador, churrasco de carneiro; frango assado, frango na grelha; cupim assado; picanha no espeto, que obviamente serão não apenas degustadas, mas devoradas impiedosamente por um batalhão de tios pançudos, que para darem conta desta hercúlea tarefa, exigem caixas e mais caixas de latas de cerveja, tão estupidamente geladas quanto eles.
À tarde, para auxiliar a digestão, é hora de relaxar um pouco na piscina. Trezentos litros de água. Setecentos litros restantes são completados por tios corpulentos, que se dividirão em dois times: os que vão contar as mesmas piadas do ano passado e os que vão soltar seus gases na água que os circundam. Não, não errei nas contas, as latinhas sempre ficam na beira da piscina, nunca dentro.
Vale ressaltar que todos os tios – e tios é uma referencia, claro, aos irmãos dos pais e seus respectivos cônjuges e também as pessoas que adotam o estado de tio como estilo de vida - terão queimaduras de até segundo grau, por sua exposição ao sol na piscina. Ficaram exatamente com o mesmo formato e cor que um tomate. Acredito que seja a forma que os vegetais encontram para vingarem toda a indiferença da qual são vítimas durante esse peculiar dia festivo.
Por fim, quando a piscina já estiver esquecida, uma criança certamente curiosa para ver os atrativos que mantiveram os tios dentro da água por tanto tempo irá sorrateiramente mergulhar na piscina, e ser retirada em cima da hora, provavelmente por uma tia que segurava na outra mão uma asinha de galinha tostadinha que sobrara do almoço.
A esta hora, uma prima adolescente atenderá seu telefone e sairá correndo para falar com o amor de sua vida, para que ele não ouça os gritos histéricos e as gargalhadas ensandecias das pessoas que agora fazem comentários de todos os acidentes dos natais passados: a avó que tropeçou e deixou cair o pudim de ameixas, o tio Luiz quando escorregou na piscina e quebrou três costelas, o ano em que o avô vomitou a dentadura...
Adoro Natais. Adoro barulhentas reuniões de famílias. Meu sangue latino não nega o gosto por festas, por barulho.
Amo muito isso afinal, por mais estranho que pareça, porque afinal de contas, as pessoas se mostram em sua verdadeira essência. Não são comedidas, não são educadas, não fazem pose, não sã polidas, não usam roupas caras, não falam de trabalho.
As pessoas são, uma vez por ano, o que querem ser. Não se apegam a convenções e aceitam a si mesmas sem nenhuma falsidade, a não ser claro, as pessoas que são por natureza falsas (e por serem falsas também no dia do Natal, acabam se tornando verdadeiras enquanto falsas).
O Natal talvez se deformou m uma espécie de carnaval. E acho que é isso na verdade que forma o elo religioso, muito além de datas comemorativas do solstício. Acho que são comemorativas, porque finalmente as pessoas encontram o que há de sagrado em sim, em sua essência, seu verdadeiro caminho para se conhecerem. As pessoas são, não mais parecem ser.
Os outros dias acabam não sendo tão santos porque as pessoas se arrependem de serem como são e passam a ser o que acham que tem que ser. Daí da mal-humor (porque tem que ser certinha), dor nas costas (porque tem que ter postura impecável).
Daí-me, por tanto, mais natais durante o ano. Mais natais para que eu possa ficar do lado das pessoas que realmente amo, como realmente são.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Rumores

Durante algum tempo me culpei imensamente pela minha descapacidade em continuar escrevendo. Não que eu seja isenta desta culpa, uma vez que fui eu que apresentei a proposta de escrever fragmentos da vida desta cidade.

Mas ontem, numa dessas agradáveis horas de devaneios sentada num café na companhia do meu amigo Alex pude concluir que não sou, ao todo, responsável pelo silêncio deste blog.

A maior crítica que se faz as cidades pequenas é o fato das pessoas se perderem demais a relatar aquilo que acontece com as outras pessoas. Fofoca, fuxico, futrica, intriga, diz-que-me-diz, enfim, nomes não faltam. Demorei muitos pares de anos para descobrir que isso é o maior defeito, mas também o maior charme. É esse ato de vagabundagem que tanto coopera para o aparecimento dos causos, das histórias. É isso que faz com que as histórias pequenas do cotidiano repercutam entre nós. É o ponto que se multiplica.

Onde não há esse ruído, onde impera o barulho estridente das máquinas, do trabalho, o som das histórias é abafado pelo volume dos acontecimentos. Poucas conversas de botequim, em geral conduzidas por notícias de jornal e de revista ou dos ambientes fechados das áreas de trabalho.

Lamentável. Nunca pensei que um dia na minha vida eu escreveria algo pró-fofoca. Ou para ser mais política, pró-socialização.

sábado, 20 de setembro de 2008

E se...

Não confunda minha paixão com uma idolatria cega.

E se um dia acordo rebelde e te deixo sem mais explicações? Sentiria minha falta? Ou seria mais uma entre uma multidão inteira? Mudaria alguma coisa no teu rumo? Duvidas? Duvidas que te deixo?

Mesmo em meio à minha simpatia, saibas que preciso me sentir querida, que preciso sentir que queres me atrair, além da atração natural que já tenho por ti. Duvidas?

Já vaguei pelas ruas da cidade, além das ruas do meu próprio pensamento e das estradas infinitas da incerteza e te asseguro que há muito ainda por explorar, e eu tenho sede por conhecer sempre mais. Vou deixar as coisas como elas estão? É o que tenho perguntado já tem algum tempo. Duvidas que vou?

Ah! Se eu for... E não duvide que se quiser eu vou! Se eu for... sentirei saudade, posto que nunca escondi minha predileção. Ah! Se me decido... sofrerei e seguirei sem arrepender-me. Apenas vou.

Duvidas, São Paulo, que te deixo?

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Fraquezas Humanas

Sempre fui da opinião que se há algo por fazer faça, se há algum amigo pra visitar visite, se há ócio, ocie. A última coisa a ser feita era, sem dúvida, sentar (ou deitar, ou pior, se jogar) num sofá, toda torta, com expressão vazia e ligar a televisão com o controle remoto.

Até o dia que eu cheguei em casa cansada.

Nesse dia, nesse memorável dia, o banho foi automático a comida foi automática, tudo gestão do meu eu-fisico imperando sobre meu raciocínio. Não faria nada, porque já havia trabalhado o dia inteiro, não visitaria ninguém, porque em São Paulo esse hábito é quase um sacrilégio, ainda mais se for no meio da semana, e ócio... quem fica ocioso por aqui? Sempre há alguma coisa que ficou pra trás.

Nesse dia eu tinha coisas pra fazer. Milhares de coisas que por minhas inúmeras limitações eu não completaria.

Nesse dia eu entendi o sucesso do aparelho. Eu entendi o que faz pessoas que trabalham tanto e que ganham tanto dinheiro investir numa televisão, dessas modernosas, que parecem quadros, das que parecem cinema, das pequininhas ainda. Cheguei um dia cansado e ligue a televisão... é uma sensação hipnótica maravilhosa: você vê, você ouve e você não absorve! Pelo contrário, dá até a impressão que junto com aquelas baboseiras todas de jornais sangrentos, novelas cretinas e fake-realiy-shows saem outras baboseiras que estavam antes na cabeça. Alivia. Relaxa. Entorpece. A alma vaga pelos problemas dos outros e volta para aquele mísero corpo cansado convencendo-o de que tudo pode ser pior,e, portanto, não há razões para queixa.

Mas agora que descobri esse novo Pasalix, tenho ainda mais certeza do quanto isso não deve ser usado, a não ser em caso de emergência. Vai que um dia colocam a televisão no meu trabalho e descobrem que assistindo a luta entre o mocinho e o bandido eu sou capaz de trabalhar doze horas?

Foi só um momento de fraqueza. De volta aos meus livros.

sábado, 16 de agosto de 2008

Pensamento inútil

Tem horas que só um chocolate me entende.

sexta-feira, 18 de julho de 2008

Desassossego


A grama aconchegava seus passos duros, que mal se desviavam das pedras, dos gravetos e dos caminhos.

Silêncio.

Tudo calmo demais, quieto demais, sossegado demais. Essa pasmaceira insistente causava-lhe repulso, asco. O silêncio só era rompido pelos gritos agudos que reverberavam de dentro de seus pensamentos, confusos e insatisfeitos. Anda! Ouse! Inspirou profundamente e o ar tão puro e só pode sentir cheiro de estagnação, e esse odor lhe causava enjôos. Assim também repudiava os romances mornos e previsíveis, contrastando com o tempo úmido e quente de mais um verão que se delongava preguiçoso por entre as vielas da cidadezinha. Não podia mais. Era demais. Novela durante a semana, feira e caldo de cana aos sábados, missa aos domingos, fofoquices entre as janelas das senhoras gordas e entre os balcões de bares onde se apoiavam os senhores bêbados. O céu excessivamente azul irritava-lhe: límpido, parecia colossal e ainda assim, ainda quando em meio ao ócio punha-se a contemplá-lo em sua grandeza, não conseguia organizar seus pensamentos naquele espaço. Queria mais. Queria ir além das calçadas largas, vazias de gente, cheias de árvores, pássaros e essas coisas tão primitivas. Não queria mais riacho onde escorriam águas frescas. Queria esbaldar-se no mar de seus sonhos.

sexta-feira, 11 de julho de 2008

Acorde!

O que mais me sustenta nessa cidade é a pureza de algumas coisa que passsam ilesas pelo caos desta metrópole. A amizade é uma delas, e não pude de achar fantástico quando a autora do texto abaixo me mandou um e-mail pedidondo pra eu ler o conteúdo de um anexo.

Voltei no tempo. Ana é uma das minhas amizades mais sólidas, verdadeiras e antigas. Quando faziamos fofoquices entre as aulas, entre um intervalo e outro, constumávamos trocar textos, poesias e cartas de amor, muitas sem nem ter destinatário, pelo puro prazer de escrever e compartilhar. O costume permanece, apesar de tantas mudanças em nossas vidas.

"Acorde.

O maestro pede: acorde... E o músico desperta... Desperta e olha em direção ao que poderá ser um futuro... E em um tom perfeito e afinado começa a caminhar, se depara com concheias, semínimas, pausas e claves. Agudos e graves se confundem em uma multidão... Ufa, uma pausa... Para que? Não se pode descansar... E o caminho é longo... Sons que invadem os ouvidos... E se reparar bem, é terrível de se ouvir, mas se reparar bem é lindo de se ouvir... Mas que som é esse? Parece mais uma buzina, uma criança chorando, soldados marchando, passos apressados que se misturam com diversos sapatos... E aquela conversa ali atrás parece o coro cantando. Mesmo com tanto barulho, com tanta confusão o músico continua afinado, já começam a se formar calos. De que? Calos de uma música exigente onde as pausas dão continuidade ao próximo passo, onde as escalas em forma de escadas sobem e descem num ritmo frenético. Ligaduras fazem ponte para uma etapa rápida, juntando com todos os sons param. Param? Sim, mas parece noite, apenas escuta-se uma fina voz... Isso faz lembrar-se de quando minha mãe cantava para eu dormir... Nada mais além de sua voz em um turbilhão de pensamentos e preces. A noite se vai, e como o clarear de um lindo dia. E como o clarear de um lindo dia... Ah não, o dia começou chuvoso e turbulento, tambores fortes e muita energia fazem com que os sons sejam de um começo de dia chuvoso, com trovoadas e relâmpagos. Sons e mais sons se misturam e ao passar do meio dia o sol se abre e tudo se acalma. Tudo acontece sem ouvir um desafino sequer. O maestro respira. Todos imóveis. O músico se levanta. O futuro se levanta e aplaude! Aplaude aquele que mesmo com tantos caminhos difíceis, com tantos sons misturados chega ao final de sua vida sem errar uma nota. Uma vida afinada, com pautas, claves, semínimas, ligaduras, mas com a intenção de sempre fazer o melhor. E ele fez. E a música chega ao fim. O futuro é logo ali! Uma vida cheia de aplausos para um músico afinado. E o músico acorda, e vê sua vida logo ali. Rejeitada como música mal interpretada, descartada como um violino que não se afina mais. E ele percebe que a nenhuma música é mal composta, que nenhuma música é feia... E sim que ela só não é aplaudida se for mal cantada, desafinada. E ele vê que sua vida foi bem composta, mas que ele mesmo não soube tocar, ele não soube afiná-la, não cuidou do se corpo como um valioso instrumento. E ele percebe o difícil trabalho do maestro, fazer com que todo o corpo da orquestra seja no fim aplaudido. E ele, agora, como maestro falido volta para sua casa, mesmo sendo um músico aplaudido. Vai estudar música. Que musica? Quem se importa qual será a próxima música. Todos voltarão ao teatro para ouvi-lo, pois sabem que o futuro será apenas aplausos. E ele, agora, como um maestro falido volta para casa, mesmo sendo um músico aplaudido. Mas ele acordou! Lembram-se? “O maestro pede: acorde...”, mas já é tarde. Vai estudar música. Que música? Quem se importa com a vida de um maestro falido. É só mais um no meio de tantas boas composições que nunca serão aplaudidas.

Ana Glaucia B. Lucente"

terça-feira, 1 de julho de 2008

O velho, as pernas e a cidade


O velho olhava aquelas pernas tão condutoras de juventude de forma intrigante. Todos os pedestres, ainda que apressados, prestes a serem devorados por seu dia-a-dia, olhavam-no, como se pudessem ler os pensamentos do velho, do velho mutilado. Do velho que observava ávido as pernas, as pernas que já não mais possuía.

Todos os dias, sentado naquele banquinho escondido do condomínio, era possível ver o velho observar as pernas dos moleques que chutavam bolas de plástico contra a parede. Não gritava com eles. Não ria. Todos os dias. O velho sentava-se, de vagar, apoiando, e se punha, tarde a fora, a observar as canelas finas das crianças a fazer estardalhaço.

Os passantes todos viam e sentiam do sentimento do pobre velho. Passavam e deixavam um olhar de pena, tristes que ficavam com os gestos do velho. Uns diziam que era saudade, saudade de si mesmo quando completo, de sua juventude ágil. Outros, que aquilo era inveja, vontade de ter aquilo que já não poderia lutar para ter.

O velho sabia desses pensamentos. Pegava os sublimando de cima da cabeça das pessoas com seus olhos ainda sagazes. Quando os lia, sorria para seus donos e comentava sobre o jogo de futebol se a pessoa estivesse usando roupa informal, e, se estivesse vestida a trabalho, comentaria sobre o jornal. O velho não tinha pernas. Mas tinha as idéias muito bem sincronizadas.

O velho ria dessas pessoas. Não entendiam que ele estava ali em solidariedade a todos aqueles pequenos amputados. Sentia pena deles. Outrora, o velho correra e joguara bola em campos de verdade, em espaços de verdade. Em cidades em que ser livre era possível. Correra, correra. E fora amputado por seus próprios erros. Mas aquelas pequenas pernas tão magrelas foram amputadas pela cidade, que não os deixava correr. De nada lhes valem, se não são para correr na infância e ganhar cicatrizes.

Observou suas cicatrizes e onde um dia houve uma perna. Sentiu-se feliz e suspirou por todos eles. Jamais teriam sinal físico de uma vida bem vivida.

sexta-feira, 20 de junho de 2008

Psicourbanismo


Gosto muito dessa cidade. Acho que o título do blog me delata de imediato. Gosto da aura daqui. Das pessoas que estão aqui. Obervá-las caminhando e preocupadas consigo é um dos meus mais raros e favoritos passatempos. Ainda assim, pago um preço caro por morar aqui.

As pessoas, para serem paulistanas não têm que nascer aqui para serem paulistanas. Não é uma imposição geográfica. Devem, acima de tudo, ter força e ambição.

As pessoas que são atraídas por São Paulo, buscam sempre "fazer a vida", ganhar muito dinheiro em pouco tempo. E elas conseguem, desde que sejam fortes e ambiciosas.

Você nunca vai encontrar um paulistano que tenha vindo pra cá para fazer amigos. Como todos vimos em busca de dinheiro, vivemos num simulacro no qual nossos colegas de trabalho são nossos amigos. Não que isso não possa ser verdade, mas amigo tem que ser aquele que a obrigação do encontro parta da vontade das pessoas e não de um horário determinado por leis e gente que a gente nem conhece.

Ninguém procura um amor, ninguém quer uma família, isso é interiorano demais. Pelo contrário, as pessoas deixam suas famílias, seu berço, por terem ambição. Ninguém pensa em vir pra cá e ter um filho; talvez se isso fosse diferente, teríamos mais prédios coloridos. Essa cor cinza da cidade é tediosa. E talvez teríamos mais vontade de ir pra casa jogar video game, e não teríamos essa vonteda de trabalhar e ficar rico. Talvez as sirenes fosse alto falante que pedissem "por favor, posso passar" e não esse grito desesperado e agonizante.

E claro, as pessoas atingem seus objetivos. Mas dinheiro e tempo possuem uma sincronia nada linear. Quanto mais dinheiro você tem, mais o tempo corre. Acho que o tempo não gosta de dinheiro, de forma que quando se vê, os objetivos estão completados, mas a vida... a vida também já está feita. Já está escrita. Acabada. Essa ironia contida na expressão "fazer a vida" só quem é paulistano percebe.

terça-feira, 17 de junho de 2008

Quatro mãos e um abraço


De repente, não mais que de repente,
Amamos, vagamente surpreendidos
O amor como um patético tormento
Inconstante e fiel, tardio e doce.

De tudo ao meu amor serei atento
Passem-se dias, horas, meses, anos
Para que o sonho viva da certeza,
De música, luar e sentimento.

E brindaremos para que desperte
Primavera dos sonhos e das preces,
Este amor que surgiu insuspeitado.

Tudo que existe de amor em mim foi dado,
A noite como amigo e como amante
Numa cintilaçõ inesperada...


Vinícius de Morais & Érica Pongeluppi

domingo, 15 de junho de 2008

Amigas e Mousse Nhá-Benta


Aaaahhhhh!!!!

O máximo! O máximo mesmo!

Domingo a tarde, amigas, Sex and the City, um gigantesco mousse nhá-benta tradicional, mulheres, gays e casaizinhos por todos os lados, um ambiente próprio para o cultivo da feminilidade de qualquer mortal sobre a terra...

Moral do dia: amanhã vou me depilar.

segunda-feira, 9 de junho de 2008

Anti-poeta


Um ser vazio
Sem sono
Sem coragem
Sem amor

Vaga errante
Passos trôpegos
Rua escura
Poças d'água

Sem destino
Sem dinheiro
Sem si

Ser enquanto arte
Viver por respirar
Escrever pela sobrevida.

segunda-feira, 2 de junho de 2008

Anseio


Abri os olhos. Estava cansado de ficar no escuro sendo que o dia já estava há muito que alto. Já escutei uns pares de vezes os sinos da Igreja da Consolação, mas não tinha coragem, não tinha força. Tinha só ferida nos pés, pés sujos. Abrir os olhos pra que? Pra ver as pessoas me olhando com nojo e medo? Não, não quis ser assim. Queria ser feito gente de bem ou queria ter nascido árvore. Acho que sou quase uma árvore, que fica tomando sol e vive só de sol e de terra. Eu também vivo quase que de sol e de terra. Também não sinto mais frio, não sinto mais fome, não sinto mais dó de mim, nem dos outros. Eu também tenho casca. Mas ainda assim queria ser árvore. Porque árvore está ali, no tempo feito eu e ainda assim não tem ferida. E todo mundo gosta, parece que ela esta de braços abertos, ao alto, pra Deus. Agradecendo a Deus. Eu não agradeço a Deus. Se sou tão feito árvore, se meus cascos são tão duro quanto os cascos das árvores porque não me fez logo de uma vez verde? Não, me fez cinza. Me fez gente pra quem é gente por inteiro me achar estranho. Mas ainda tenho minha metade gente e, um dia,ah! um dia eu morro. Vão-me por em vala comum, em cova rasa, nem nome não vão por. Mas é bom que não tenha nome. Porque árvore não tem nome e é dali mesmo que eu vou querer crescer. Mas não quero ser mais gente não, que ser gente é muito triste. Quero de vez nascer, nascer enquanto árvore.

sexta-feira, 30 de maio de 2008

Pé esquerdo, aquele que a gente não escreve...


Criei este blog um dia depois que minha amiga Jaque me pediu para ajudá-la a criar uma postagem sobre as dádivas de não co-habitar. Fiquei maravilhada com a simples idéia de publicar as várias páginas de baboseiras sem fim que com tanto afinco e graças às minhas horas vadiação pude produzir. Meus contos. Minhas histórias. Uma mistura de diário e livro de histórias.

Pelo título do blog, é nítido que meu intento primeiro era postar um conto, mas... minha página de diário abaixo vai explicar com riqueza de detalhes e ironias os fatos do dia, que se não justificam ao todo, ao menos em partes cumpre sua função.

Primeiro que amanheceu chovendo. Ah! Como eu adoro dias cizentos, chuvosos e frios... São tão confortáveis, tão aconchegantes, tão soturnos e charmosos...

Legais na musiquinha do Jack Johnson. Por que de repente me dou conta que ainda é sexta-feira, ainda tenho doze horas de trabalho pra poder chegar em casa e curtir minha chuva, meu frio e meu edredom. Não, catorze, catorze. Hoje tem academia.

Ok, ok. Não dava pra fugir. Levantei. Não acendi nenhuma luz e fiquei me arrastando, pondo roupas no escuro e arrumando minha bolsa, preguiça, preguiça, preguiça. Pelo menos pensava em tomar café da manhã de meia e pantufa, pão quentinho, crocante. Tomar o que? É, pois é... Morar sozinha tem dessas coisas, se você não foi ao mercado, não vai encontrar nada pra comer. Não estava disposta a cozinhar uma abóbora caipira (o que havia na minha geladeira) pra comer as seis da manhã.

Ok de novo. Melhor sair de uma vez. Pegar o ônibus. Não, não, não. Avançaste demais. Antes do ônibus, filha, o que você tem que fazer? Caminhar, caminhar 200 metros. Pegue o guarda-chuva. Não tinha guarda-chuva. Dos três guarda-chuvas que eu tinha estocado, nenhum resistiu aos temporais dessa cidade.

Depois de me acostumar com o fato de que duzentos metros andando sob chuva ácida não seriam capazes de causar nenhum ferimento que pudesse me garantir um atestado pra ficar em repouso, apenas me deixariam em um estado pouco apresentável, ainda mais para a hora da manhã, chego ao ponto de ônibus. Lotado. Teria crises de claustrofobia com as pessoas aglomeradas e com os vidros embaçados, o excesso de umidade, no ar, nas roupas, tosses e espirros vindos de todas as direções. Claustrofobia também não é sinônimo de dia de descanso.

As próximas 10 horas depois da saga que é ir de um ponto a outro em São Paulo, se resumem em trabalho, e sobre trabalho eu vou falar muito pouco. Trabalho é uma coisa monótona demais pro meu gosto. Vamos fazer assim, como em The Sims, quando eles saem pra trabalhar, avançamos porque o joguinho só tem graça quando eles voltam.

Apesar disso, um dia de trabalho pode fazer muito estrago com a sanidade mental das pessoas. Eu estava com minhas lágrimas prontas, aliás, reprimidas no caminho de volta (ônibus, pessoas tossindo, blá, blá, blá).

O motivo: não encontraria ninguém em casa. Lá ia eu passar o fim de semana sozinha em casa outra vez fazendo as tão odientas tarefas domésticas enquanto todo mundo ia se divertir, tem seus afetos e almoços de família.
E assim, nesse depressivo estado de espírito, me convenci de que precisava pelo menos de um pão para o café da manhã. Mercado. Durante as compras me lembrei-me da monografia, da monografia de pós, atrasada, mais vontade de chorar. Lembrei-me de pegar desinfetante, o banheiro continua nojentamente entupido e terei que chamar o encanador. Mais vontade de chorar. E antes que me lembrasse de mais alguma coisa, resolvi passar logo tudo de uma vez no caixa.

De repente, olho para minha cesta de compras e desvendo o mistério: uma bandeja de iogurte de seis unidades, granola (um quilo!!), massa para bolo, barra de cereal, quatro pães francês, mais o pão de forma, requeijão, uma barra de talento, um pacote gigantesco de bolacha recheada de chocolate, um litro de refrigerante uma garrafinha de ice, tic-tac e pra completar dois pacotes de absorventes. Dias tensos.

Depois que a gente descobre a causa do problema fica mais fácil controlar as situações. Não se você insistir em levar uma vida normal claro. Porque eu insisti nesse erro, que ora, significava ir para a academia e descobri apenas que meus exercícios se intensificariam com aumento da carga. Pena que a carga em questão esteja acoplada ao meu corpo.

Finalmente! Casa, chuva, frio, meu blog. Estava pronta pra pegar um texto que eu havia escrito em 2006, logo que cheguei em São Paulo, queria postar meu olhar ainda imigrante, de fascínio com a cidade cinza e não essa semi-paulistana reclamenta que me tornei. Achei o arquivo, mas de 2006 pra cá eu me esqueci de muitas coisas, inclusive da senha do arquivo. Tentei um decodificador. Nada. Brainstorm de senhas. Nada. Reza. Nada. Xingamento. Nada. Nada. Nada.

E isso sim foi o catalisador para que eu fizesse esse texto pra postar. Acredite, eu queria começar com minhas histórias que vim tecendo com tanto esmero, palavra a palavra. Ou ao menos, posto que também é um diário, que começasse falando do mágico momento em que eu encontrei o amor da minha vida na Hípica, descobrindo ainda sua linhagem nobre e seu dever junto ao seu povo num pequeno, confortável e muito rico reino que eu nem sabia que existia.

Bah! Hora de terminar que isso é um espaço destinado a contos paulistanos. Contos de fadas estão em outro lugar.

quinta-feira, 29 de maio de 2008

Pra começar...

Escrever sempre foi um prazer e uma companhia. E quando eu falo sempre, é quase sempre mesmo, desde uns três ou quatro anos de idade.

Isso não quer dizer que escrever seja fácil. Pelo contrário, as palavras saem de mim com muito mais dificuldade agora. Elas, as palavras, são perigosas, se espreitam por entre seus significados, significante, signos e essas coisas que os lingüistas insistem. Ainda assim, adoráveis. As palavras são místicas: é mágica a forma com que moldamos as palavras e por simples combinações de traços golpeamos, curamos, criamos cicatrizes.

Mas existem coisas das quais não podemos fugir. E escrever talvez seja mesmo minha sorte.

Aqui, um pouco de mim, um pouco do meu mundo São Paulo. Um pouco das pessoas que pertencem ao meu mundo e de alguma forma me pertencem também. As lágrimas que aqui verterei serão negras, como negra seria a tinta que feriria o papel (se não estivéssemos em tempos virtuais).