quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Então... é Natal

- E agradecemos a Deus, em primeiro lugar, por estarmos todos reunidos, diante desta mesa farta...
- Mãe eu quero torta de frango com requeijão
- Shhhhh!
- Farta acima de tudo de amor e união
- Mãããe! Olha o pernil queimando no forno!
Natal em família. Porque Natal que se preze, tem que ser em família. Tem que ser tudo apertado para ressaltar a união. Tem ser tudo farto para destacar a gula. Tem que ser estranho para confirmar que no fundo somos todos iguais.
Há certas tradições que jamais deveriam ser extintas. Comemorar o Natal em família prima em minha lista desde quando eu era neta única e tinha a difícil missão de receber todos os presentes que as pessoas queriam me dar, e que por receber tantos presentes de avós , pais e tios, nem dava muita importância se Papai Noel resolvesse me mandar mais um.
Nunca tive uma família muito grande, mas também nunca achei que precisasse. Tenho no meu pequeno núcleo todas as características para enquadrar aquele conjunto de pessoas como família.
Reunimos-nos no Natal. Todo Natal. E todo o Natal contamos com a missa de Natal, a ceia de Natal e o almoço de Natal, ou seja, dentro da mais absoluta normalidade contando com dois motivos gastronômicos e um religioso, fortes suficientes para por frente a frente pessoas que rosnaram uma para as outras durante o ano inteiro, fazendo-as sorrir e desejar que tenhamos um Feliz Natal em família.
O motivo religioso, a Missa do Galo, é um pano de fundo e serve como intimidador para quando alguém insiste em não dar trégua para as querelas cotidianas do resto do ano.
- Mas é Natal, Rafa! Esqueça essa mesquinharia do seu primo, ele te mostrou o ano inteiro que é devagar, vamos cear em paz!
Também é de grande valia o ponto religioso para domar os estômagos mais vorazes.
- Ai meu Deus! Gula é pecado! Não é porque temos fartura que vamos fazer tudo errado e esquecer o verdadeiro motivo de estamos aqui: o nascimento do Menino Jesus!
Clichê, clichê, clichê.
O dia de Natal em si é sinônimo de marasmo nas ruas, mas intensas atividades em algumas casas. Digo algumas porque noventa por cento das casas na realidade encontrar-se-ão absolutamente vazias, já que as pessoas, por costume ou vadiação, preferem agrupar-se na casa de um parente, dizendo saudar novamente o pobre Menino Jesus.
A casa escolhida, em geral é a menos espaçosa em termos qualitativos para abrigar pessoas, mas com melhor estrutura para gelar cervejas e assar pernis. Nessa época do ano, difícil o cômodo da casa escolhida que não atinja a densidade demográfica de cinco pessoas por cômodo. Incluindo os banheiros, onde sempre é possível encontrar ao menos três crianças tomando banho na banheira, um adulto pra tomar conta e alguém passando mal na privada, seja dos intestinos via arriba ou via abaixo.
É este o momento em que as casas se tornam santuário dos colchonetes. Há colchões, colchonetes e edredons espalhados por cada centímetro da casa, exceto claro, o local onde se encontra o forninho, a churrasqueira e a piscina de mil litros.
De o ato dar um jeitinho para todos dormirem confortáveis, derivou-se um outro hábito peculiar. Devo confessar que nunca entendi muito bem a necessidade de dividir os cômodos entre quartos de dormir de homens e quarto de dormir de mulheres, já que o álibi usado é a manutenção da ordem. Estranho.
Por ser uma data comemorativa típica do verão, alguns lugares ficam intransitáveis, como por exemplo, a cozinha, onde se assam todos os tipos de carne. Aliás, isso me recorda mais uma divisão sexual tipicamente natalina: mulheres, principalmente as que já atingiram mais de cinqüenta anos, têm que preparar assados. Homens, de todas as idades, insistem em fazer churrasco.
O resultado é um pandemônio de carnes de todos os tipos: carneiro à caçador, churrasco de carneiro; frango assado, frango na grelha; cupim assado; picanha no espeto, que obviamente serão não apenas degustadas, mas devoradas impiedosamente por um batalhão de tios pançudos, que para darem conta desta hercúlea tarefa, exigem caixas e mais caixas de latas de cerveja, tão estupidamente geladas quanto eles.
À tarde, para auxiliar a digestão, é hora de relaxar um pouco na piscina. Trezentos litros de água. Setecentos litros restantes são completados por tios corpulentos, que se dividirão em dois times: os que vão contar as mesmas piadas do ano passado e os que vão soltar seus gases na água que os circundam. Não, não errei nas contas, as latinhas sempre ficam na beira da piscina, nunca dentro.
Vale ressaltar que todos os tios – e tios é uma referencia, claro, aos irmãos dos pais e seus respectivos cônjuges e também as pessoas que adotam o estado de tio como estilo de vida - terão queimaduras de até segundo grau, por sua exposição ao sol na piscina. Ficaram exatamente com o mesmo formato e cor que um tomate. Acredito que seja a forma que os vegetais encontram para vingarem toda a indiferença da qual são vítimas durante esse peculiar dia festivo.
Por fim, quando a piscina já estiver esquecida, uma criança certamente curiosa para ver os atrativos que mantiveram os tios dentro da água por tanto tempo irá sorrateiramente mergulhar na piscina, e ser retirada em cima da hora, provavelmente por uma tia que segurava na outra mão uma asinha de galinha tostadinha que sobrara do almoço.
A esta hora, uma prima adolescente atenderá seu telefone e sairá correndo para falar com o amor de sua vida, para que ele não ouça os gritos histéricos e as gargalhadas ensandecias das pessoas que agora fazem comentários de todos os acidentes dos natais passados: a avó que tropeçou e deixou cair o pudim de ameixas, o tio Luiz quando escorregou na piscina e quebrou três costelas, o ano em que o avô vomitou a dentadura...
Adoro Natais. Adoro barulhentas reuniões de famílias. Meu sangue latino não nega o gosto por festas, por barulho.
Amo muito isso afinal, por mais estranho que pareça, porque afinal de contas, as pessoas se mostram em sua verdadeira essência. Não são comedidas, não são educadas, não fazem pose, não sã polidas, não usam roupas caras, não falam de trabalho.
As pessoas são, uma vez por ano, o que querem ser. Não se apegam a convenções e aceitam a si mesmas sem nenhuma falsidade, a não ser claro, as pessoas que são por natureza falsas (e por serem falsas também no dia do Natal, acabam se tornando verdadeiras enquanto falsas).
O Natal talvez se deformou m uma espécie de carnaval. E acho que é isso na verdade que forma o elo religioso, muito além de datas comemorativas do solstício. Acho que são comemorativas, porque finalmente as pessoas encontram o que há de sagrado em sim, em sua essência, seu verdadeiro caminho para se conhecerem. As pessoas são, não mais parecem ser.
Os outros dias acabam não sendo tão santos porque as pessoas se arrependem de serem como são e passam a ser o que acham que tem que ser. Daí da mal-humor (porque tem que ser certinha), dor nas costas (porque tem que ter postura impecável).
Daí-me, por tanto, mais natais durante o ano. Mais natais para que eu possa ficar do lado das pessoas que realmente amo, como realmente são.

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