terça-feira, 1 de julho de 2008

O velho, as pernas e a cidade


O velho olhava aquelas pernas tão condutoras de juventude de forma intrigante. Todos os pedestres, ainda que apressados, prestes a serem devorados por seu dia-a-dia, olhavam-no, como se pudessem ler os pensamentos do velho, do velho mutilado. Do velho que observava ávido as pernas, as pernas que já não mais possuía.

Todos os dias, sentado naquele banquinho escondido do condomínio, era possível ver o velho observar as pernas dos moleques que chutavam bolas de plástico contra a parede. Não gritava com eles. Não ria. Todos os dias. O velho sentava-se, de vagar, apoiando, e se punha, tarde a fora, a observar as canelas finas das crianças a fazer estardalhaço.

Os passantes todos viam e sentiam do sentimento do pobre velho. Passavam e deixavam um olhar de pena, tristes que ficavam com os gestos do velho. Uns diziam que era saudade, saudade de si mesmo quando completo, de sua juventude ágil. Outros, que aquilo era inveja, vontade de ter aquilo que já não poderia lutar para ter.

O velho sabia desses pensamentos. Pegava os sublimando de cima da cabeça das pessoas com seus olhos ainda sagazes. Quando os lia, sorria para seus donos e comentava sobre o jogo de futebol se a pessoa estivesse usando roupa informal, e, se estivesse vestida a trabalho, comentaria sobre o jornal. O velho não tinha pernas. Mas tinha as idéias muito bem sincronizadas.

O velho ria dessas pessoas. Não entendiam que ele estava ali em solidariedade a todos aqueles pequenos amputados. Sentia pena deles. Outrora, o velho correra e joguara bola em campos de verdade, em espaços de verdade. Em cidades em que ser livre era possível. Correra, correra. E fora amputado por seus próprios erros. Mas aquelas pequenas pernas tão magrelas foram amputadas pela cidade, que não os deixava correr. De nada lhes valem, se não são para correr na infância e ganhar cicatrizes.

Observou suas cicatrizes e onde um dia houve uma perna. Sentiu-se feliz e suspirou por todos eles. Jamais teriam sinal físico de uma vida bem vivida.

2 comentários:

Anônimo disse...

Belíssimo o texto, assim como os outros.

Anônimo disse...

Saudades de vc, Quissima!

bjo

Ana queridinha