sexta-feira, 18 de julho de 2008

Desassossego


A grama aconchegava seus passos duros, que mal se desviavam das pedras, dos gravetos e dos caminhos.

Silêncio.

Tudo calmo demais, quieto demais, sossegado demais. Essa pasmaceira insistente causava-lhe repulso, asco. O silêncio só era rompido pelos gritos agudos que reverberavam de dentro de seus pensamentos, confusos e insatisfeitos. Anda! Ouse! Inspirou profundamente e o ar tão puro e só pode sentir cheiro de estagnação, e esse odor lhe causava enjôos. Assim também repudiava os romances mornos e previsíveis, contrastando com o tempo úmido e quente de mais um verão que se delongava preguiçoso por entre as vielas da cidadezinha. Não podia mais. Era demais. Novela durante a semana, feira e caldo de cana aos sábados, missa aos domingos, fofoquices entre as janelas das senhoras gordas e entre os balcões de bares onde se apoiavam os senhores bêbados. O céu excessivamente azul irritava-lhe: límpido, parecia colossal e ainda assim, ainda quando em meio ao ócio punha-se a contemplá-lo em sua grandeza, não conseguia organizar seus pensamentos naquele espaço. Queria mais. Queria ir além das calçadas largas, vazias de gente, cheias de árvores, pássaros e essas coisas tão primitivas. Não queria mais riacho onde escorriam águas frescas. Queria esbaldar-se no mar de seus sonhos.

sexta-feira, 11 de julho de 2008

Acorde!

O que mais me sustenta nessa cidade é a pureza de algumas coisa que passsam ilesas pelo caos desta metrópole. A amizade é uma delas, e não pude de achar fantástico quando a autora do texto abaixo me mandou um e-mail pedidondo pra eu ler o conteúdo de um anexo.

Voltei no tempo. Ana é uma das minhas amizades mais sólidas, verdadeiras e antigas. Quando faziamos fofoquices entre as aulas, entre um intervalo e outro, constumávamos trocar textos, poesias e cartas de amor, muitas sem nem ter destinatário, pelo puro prazer de escrever e compartilhar. O costume permanece, apesar de tantas mudanças em nossas vidas.

"Acorde.

O maestro pede: acorde... E o músico desperta... Desperta e olha em direção ao que poderá ser um futuro... E em um tom perfeito e afinado começa a caminhar, se depara com concheias, semínimas, pausas e claves. Agudos e graves se confundem em uma multidão... Ufa, uma pausa... Para que? Não se pode descansar... E o caminho é longo... Sons que invadem os ouvidos... E se reparar bem, é terrível de se ouvir, mas se reparar bem é lindo de se ouvir... Mas que som é esse? Parece mais uma buzina, uma criança chorando, soldados marchando, passos apressados que se misturam com diversos sapatos... E aquela conversa ali atrás parece o coro cantando. Mesmo com tanto barulho, com tanta confusão o músico continua afinado, já começam a se formar calos. De que? Calos de uma música exigente onde as pausas dão continuidade ao próximo passo, onde as escalas em forma de escadas sobem e descem num ritmo frenético. Ligaduras fazem ponte para uma etapa rápida, juntando com todos os sons param. Param? Sim, mas parece noite, apenas escuta-se uma fina voz... Isso faz lembrar-se de quando minha mãe cantava para eu dormir... Nada mais além de sua voz em um turbilhão de pensamentos e preces. A noite se vai, e como o clarear de um lindo dia. E como o clarear de um lindo dia... Ah não, o dia começou chuvoso e turbulento, tambores fortes e muita energia fazem com que os sons sejam de um começo de dia chuvoso, com trovoadas e relâmpagos. Sons e mais sons se misturam e ao passar do meio dia o sol se abre e tudo se acalma. Tudo acontece sem ouvir um desafino sequer. O maestro respira. Todos imóveis. O músico se levanta. O futuro se levanta e aplaude! Aplaude aquele que mesmo com tantos caminhos difíceis, com tantos sons misturados chega ao final de sua vida sem errar uma nota. Uma vida afinada, com pautas, claves, semínimas, ligaduras, mas com a intenção de sempre fazer o melhor. E ele fez. E a música chega ao fim. O futuro é logo ali! Uma vida cheia de aplausos para um músico afinado. E o músico acorda, e vê sua vida logo ali. Rejeitada como música mal interpretada, descartada como um violino que não se afina mais. E ele percebe que a nenhuma música é mal composta, que nenhuma música é feia... E sim que ela só não é aplaudida se for mal cantada, desafinada. E ele vê que sua vida foi bem composta, mas que ele mesmo não soube tocar, ele não soube afiná-la, não cuidou do se corpo como um valioso instrumento. E ele percebe o difícil trabalho do maestro, fazer com que todo o corpo da orquestra seja no fim aplaudido. E ele, agora, como maestro falido volta para sua casa, mesmo sendo um músico aplaudido. Vai estudar música. Que musica? Quem se importa qual será a próxima música. Todos voltarão ao teatro para ouvi-lo, pois sabem que o futuro será apenas aplausos. E ele, agora, como um maestro falido volta para casa, mesmo sendo um músico aplaudido. Mas ele acordou! Lembram-se? “O maestro pede: acorde...”, mas já é tarde. Vai estudar música. Que música? Quem se importa com a vida de um maestro falido. É só mais um no meio de tantas boas composições que nunca serão aplaudidas.

Ana Glaucia B. Lucente"

terça-feira, 1 de julho de 2008

O velho, as pernas e a cidade


O velho olhava aquelas pernas tão condutoras de juventude de forma intrigante. Todos os pedestres, ainda que apressados, prestes a serem devorados por seu dia-a-dia, olhavam-no, como se pudessem ler os pensamentos do velho, do velho mutilado. Do velho que observava ávido as pernas, as pernas que já não mais possuía.

Todos os dias, sentado naquele banquinho escondido do condomínio, era possível ver o velho observar as pernas dos moleques que chutavam bolas de plástico contra a parede. Não gritava com eles. Não ria. Todos os dias. O velho sentava-se, de vagar, apoiando, e se punha, tarde a fora, a observar as canelas finas das crianças a fazer estardalhaço.

Os passantes todos viam e sentiam do sentimento do pobre velho. Passavam e deixavam um olhar de pena, tristes que ficavam com os gestos do velho. Uns diziam que era saudade, saudade de si mesmo quando completo, de sua juventude ágil. Outros, que aquilo era inveja, vontade de ter aquilo que já não poderia lutar para ter.

O velho sabia desses pensamentos. Pegava os sublimando de cima da cabeça das pessoas com seus olhos ainda sagazes. Quando os lia, sorria para seus donos e comentava sobre o jogo de futebol se a pessoa estivesse usando roupa informal, e, se estivesse vestida a trabalho, comentaria sobre o jornal. O velho não tinha pernas. Mas tinha as idéias muito bem sincronizadas.

O velho ria dessas pessoas. Não entendiam que ele estava ali em solidariedade a todos aqueles pequenos amputados. Sentia pena deles. Outrora, o velho correra e joguara bola em campos de verdade, em espaços de verdade. Em cidades em que ser livre era possível. Correra, correra. E fora amputado por seus próprios erros. Mas aquelas pequenas pernas tão magrelas foram amputadas pela cidade, que não os deixava correr. De nada lhes valem, se não são para correr na infância e ganhar cicatrizes.

Observou suas cicatrizes e onde um dia houve uma perna. Sentiu-se feliz e suspirou por todos eles. Jamais teriam sinal físico de uma vida bem vivida.